Os pesquisadores brasileiros investigam o papel dos RNAs na origem das doenças causadas por príons. Um surto da chamada doença da vaca se espalhou no Reino Unido e mais de 4 milhões de animais tiveram que ser sacrificados. Freepik tudo começou com vacas impressionantes. Na década de 1960, os veterinários britânicos já relataram comportamentos estranhos em rebanhos, mas foi no final dos anos 80 que o mundo despertou para o problema. Um surto da chamada doença da vaca se espalhou no Reino Unido e mais de 4 milhões de animais tiveram que ser sacrificados. Um fator ainda mais agravante é que os humanos que consumiram carne contaminada poderiam desenvolver uma forma variante de doença de Creutzfeldt-Jakob, também fatal. Essas doenças afetam o sistema nervoso e se assemelham a outras doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer e a doença de Parkinson. Mas, além da letalidade e da falta de tratamento, eles têm um diferencial perturbador: são transmissíveis. Esse fator é muito intrigante porque não são infecções causadas por vírus, bactérias ou qualquer outro agente vivo. O guardião é uma proteína de seu próprio corpo, que age para agir patologicamente. Portanto, ela foi nomeada Prion, uma junção de “proteína” e “infecciosa”. Mas, afinal, como uma proteína natural se torna capaz de infectar um organismo e propagar sua forma defeituosa? Em nosso grupo de pesquisa, com pesquisadores do Instituto de Bioquímica Médica Leopold de Meis (IBQM) e da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fomos dedicados há anos para entender esse mistério. Queremos descobrir como as proteínas normais podem se tornar agentes infecciosos e induzir outros a seguir o mesmo caminho, dando origem a doenças devastadoras. Uma conexão perigosa recente, publicamos um estudo na revista RNA Biology que traz novas pistas sobre esse processo. Em parceria com pesquisadores do Instituto Butantan e do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), identificamos moléculas específicas de RNA que podem ser cofatores essenciais na conversão da proteína primária normal em sua forma patogênica. Para investigar essa interação, extraímos o RNA total das células neuronais de camundongo e a incubamos com a proteína primária do mesmo animal. O resultado foi a formação de agregados insolúveis, que são semelhantes aos observados no cérebro de pacientes com doenças primárias. Esses caroços não eram inofensivos. Quando aplicados às culturas celulares, eles causaram toxicidade e estimularam a formação de novos agregados. Ou seja, um comportamento clássico de um príon infeccioso. Ao combinar técnicas de biologia molecular e bioinformática, conseguimos identificar quais RNAs estavam mais fortemente envolvidos nessa interação. Descobrimos que muitos deles fazem parte dos ribossomos – estruturas responsáveis pela produção de proteínas com base em instruções de DNA. Isso chama a atenção, porque o RNA ribossômico (RNAR) é o mais abundante do corpo. O detalhe faz a diferença graças à extensa experiência em sequenciamento genético da equipe do Instituto Butantan e IQ-USP, conseguimos analisar essas moléculas RNAR de profundidade. Identificamos três padrões recorrentes em suas seqüências – pequenos alongamentos com baixa complexidade, como repetições do tipo Uuuu ou Gaga – que favorecem a ligação à proteína do príone. Mesmo após o tratamento com enzimas que degradam o RNAR, essas regiões permaneceram associadas à proteína, indicando uma interação forte e possivelmente decisiva. Além disso, vimos que a proporção entre a proteína PRION e o RNA também é relevante. Quando há menos proteína em comparação com o RNA, é formada uma mistura líquida menos agressiva. À medida que a proporção de proteínas aumenta, os agregados insolúveis aparecem. Outras pesquisas do nosso grupo já mostraram que, quando essa queda de líquido de príons adquire características de gel e, posteriormente, solidifica em um formato incorreto, essa aglomeração é irreversível e essencial para a infecciosidade de doenças precoces. Quando o sistema de defesa se torna risco, uma das hipóteses mais intrigantes que surgem desses achados é que um mecanismo natural para a defesa celular pode facilitar involuntariamente a formação de príons patogênicos. Em situações estressantes – como infecções virais, febre alta ou escassez de nutrientes – as células reestruturam temporariamente. Eles se concentram em preservar os recursos, formando “grânulos de estresse”. Esses compartimentos mais densos nos RNAs e proteínas podem ser precisamente o cenário ideal para a proteína de príon mudar de forma e se tornar infecciosa. Esses achados expandem significativamente o papel do RNAR no contexto de doenças neurodegenerativas. Mostramos que essas moléculas, anteriormente vistas apenas como intermediárias na produção de proteínas, também participam ativamente dos processos moleculares que levam à formação de agregados tóxicos. Isso pode ajudar a entender melhor as doenças primárias e outras causadas por agregados de proteínas tóxicas, como as doenças de Alzheimer e Parkinson. O estudo teve apoio fundamental da Biologia Estrutural e da Inct Bioimagem (por Aviso Público de CNPQ e Faperj), a Fundação Butantan (com Aviso FAPESP), bem como Capes. E ainda é preciso muita pesquisa para desvendar completamente o que acontece nos cérebros afetados por essas proteínas. Mas esperamos que, no futuro, esse conhecimento possa ajudar a orientar o desenvolvimento de terapias que impedem a formação ou disseminação desses agregados. Afinal, se o RNAR pode estar na fonte do problema, você também poderá fazer parte da solução para essas doenças – que hoje permanecem prejudiciais. A ANVISA autoriza os testes em humanos da vacina contra a gripe aviária Yraima Cordeiro recebeu financiamento do FaperJ e CNPQ para desenvolver esta pesquisa. Jerson Lima Silva recebe financiamento da CNPQ e FAPERJ. Sergio Verjovski-Alalmeida recebe financiamento da CNPQ, FAPESP e Butantan Foundation. Ana Carolina Tahira não consulta, trabalha, tem ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que possa se beneficiar da publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de sua posição acadêmica.
g1